segunda-feira, janeiro 12, 2009

creia: na cidade em que vivo há lugares sagrados, há ritos secretos. na cidade em que vivo vive alguém com a chave do encanto.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

benditos os bares que acolhem malditos onde vidas centrífugas encontram seu centro.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

há esquinas com fantasmas de quem nunca morreu assombrando minha sina de viver pela metade.
essas ruas eu bem conheço: pra alguns perspectivas, pra outros pontos de fuga. para mim panos de fundo de ausências em primeiro plano.

terça-feira, dezembro 02, 2008

eu não preciso ver para saber que na madrugada o obelisco impenetrável brilha, aceso como essa chama lenta que em torno dela a noite quente gira, tonta, qual mariposa atônita.

sexta-feira, novembro 14, 2008

alguém me conte um dia desse Jonas no ventre da baleia. histórias de quem foi tão fundo só vem à tona superficialmente.

quarta-feira, novembro 12, 2008

coração é trapezista até ficar na mão, até não ter mão que o segure, até romper-se a corda, até falhar o olho. a carreira acaba em salto mortal.

gasolina pouca, grana curta, prazo no fim, nada que se compare a pairar no vácuo entre encontrá-la ou não.

sexta-feira, novembro 07, 2008

numa história estranha dos meus livros de infância um mendigo vivia de sopa de pedra. história estranha onde um mendigo mente.

o mendicante mentiroso apareceria na tua porta e pediria licença para cozinhar sua pedra. não pediria nada, só fogo, água e panela.

como negar? e se ele dissesse que com um pouco de legumes a sopa ficaria ainda melhor, como negar? e se ele sugerisse que sal seria um bom complemento, como negar? um naco de carne seria o toque final. ao fim, uma sopa de pedra rica e perfumada.

quem conta para crianças histórias em que mendigos mentem?

eu não minto. minhas histórias têm sal, tem carne, têm pele, mas se elas têm algum gosto são das pedras indigestas que carrego comigo, pedras colhidas na selva de pedras, pedras que eu, lapidar, mantenho brutas.

eu não minto. trago as pedras na ponta da língua.

quinta-feira, setembro 20, 2007

da janela do táxi nas avenidas vazias esta cidade parece lógica, parece límpida. na noite profunda fica tão claro: a soma de todos os silêncios, subtraídos mil ruídos, é um murmúrio elétrico, nota de fundo dessa partitura insana.

é quando tudo se cala que escuto direito os meus desertos.

quinta-feira, junho 28, 2007

caiu chuva, cai a noite, saio a pé.

carros passam, não têm pressa, e eu me embebo embevecido no som molhado de pneus no asfalto, dos motores macios e seus óleos e aço, e sorrio enternecido com os murmúrios maquinais da rua escura.

amar é isso, saborear as entrelinhas da respiração tranqüila.

quarta-feira, junho 06, 2007

a cidade é grande quando se está só, essa noite é imensa porque tanto faz.

mil ruídos por todos os lados vêm de vidas tão longe que nem me imaginam.

há lembranças, muitas. metade aumenta o silêncio, as outras nem fazem eco.

o sono estanque essa noite, o sonho a condene à extinção sem causar espécie.

terça-feira, maio 08, 2007

meu refrão são essas ruas, as esquinas, versos que se repetem dessa música que não deslancha, mandinga que eu recito para evocar um dia a magia que faz asfalto virar pele, faróis olharem fundo, motores soluçarem sôfregos.

eu bato sempre nas mesmas teclas e o que me brotam são letras, crescem linhas, nada que se pareça com o calor sem palavras.

lá fora, lá longe, ela arde e eu sei.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

sol por aqui dribla nuvens, se esgueira entre os prédios, quica em vidraças para te acertar em cheio com beijos-surpresa na face, no peito, nos olhos atônitos.

na primavera que essa moça me traz meus dias cinzentos tem pancadas de luz no decorrer do período.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

rodar a esmo à noite pelas ruas bonitas, guiar invisível por entre brilhos e luzes desmantela a cada esquina a ficção barata criada em balcão de bar.
assim que nada mais faz grande sentido credo quid absurdum, quod eram demonstratum. santo remédio.

moça, eu me retrato: releve o latim que eu gastei para esconder num mal retrato que no fundo eu falo grego.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

o que as ruas ecoam não diz muito, fachadas só propagam buzinas e motores, trovões e tiros secos, e aquilo que o peito grita morre entre quatro paredes.

em letras mudas componho acordes que o vento espalha, bits e bites rugindo de fome por fomes iguais.

quinta-feira, setembro 14, 2006

mergulho meus dedos no fluxo claro de eletricidade viva que ilumina sorrisos, acende os olhos e se infiltra na carne, na pele, narinas e língua.

nasci aéreo, minhas raízes sentem o solo por relâmpagos e raios.

terça-feira, setembro 12, 2006

as palavras que te exprimam se escondem pelo mundo em sinos sagrados de bronze, no silêncio que precede os fogos de artifício, nos passos mudos de quem dança em transe.

as palavras que te expressam lambuzam a língua com mel e inundam os ouvidos de mar.

as palavras que eu espremo dessas teclas pequeninas cobrem teu dia de pétalas e espalham o perfume desse incenso que arde intenso na ponta dos meus dedos fortes.

segunda-feira, setembro 11, 2006

voltando pelas ruas noite adentro me acompanha lado a lado a lua clara e veloz entre prédios e fachadas e muros e cartazes e ela surge olhando firme pelas frestas e esquinas, nos semáforos, nas ladeiras, lua densa, suspensa, lua cujo peso e cujo toque e calor e perfume são o centro ensolarado das minhas revoluções afetivas.

quarta-feira, agosto 30, 2006

e quando eu me dou conta as palavras não dão conta, elas soçobram e flutuam, soltas sobre o mar que inundou as entrelinhas e trouxe ondas e espuma onde risos bóiam leves, aliviados porque a terra enfim sumiu da vista.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Tire-me da boca o que me engana a fome, leve os espelhos que eu engano tão bem. Que a sede do que me é seiva me ponha à altura do que ainda não sou.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Eis de volta meus mortos, minhas mortes, eis de volta a lembrança viva de que sim, não me lembro mais, sim eu esqueci, e daquilo que marcou minha pele e matou meu tato sobrou pouco, farrapos, detalhes que teimaram em não desbotar e insistem em ter luz, gume, cheiro denso de café, talvez chocolate, quiçá canela, memórias intensas mas desnorteadas, fantasmas sem alma de um corpo que evaporou.

Ela me traz de volta, não sei como, o paladar complexo do que não tem volta.

sábado, agosto 19, 2006

espelho, espelho meu, jogue-me na cara esse retrato antes que eu me disfarce em cacos, enquadre-me ligeiro senão viro fumaça, mantenha-me à distância antes que meu fôlego te embace.

respeitável público, que meus truques falhem todos e eu desista enfim de me serrar em dois.

terça-feira, maio 30, 2006

se essa curva se essa rua fosse minha, eu trocava eu mudava de lugar, só pra ver, só pra ler essa cidade como alguém que acaba de chegar.

sexta-feira, maio 26, 2006

lua filha da puta, lua linda tão rara que não dá as caras quando eu mais preciso, quando as marés são baixas e nem meus lobos uivam mais.

sob o céu cortado em linhas duras sou satélite de buracos negros.

quinta-feira, março 23, 2006

agora que tanto faz
um dia você me conta
que frutos eu te semeio
em que pontos eu te toco
que bons ventos eu trago
um dia voce me conta
no tempo em que eu não havia
o quanto eu te fazia falta.

domingo, março 19, 2006

nem me fale dela, não te dou esse direito, a menos que a conheça por dentro, que beba quente das suas artérias, que transite em transe entre os seus nervos. fique você com a sua cidade e eu fico com a minha, minha cidade aos pedaços, minhas fraturas expostas.

no colo dessa moça despejo pedra bruta, rios turvos, lenha em brasa, presentes desumanos de um Osíris sem Ísis.

isso não se faz, não com qualquer um.

para ela entrego a chave da minha cidade.

segunda-feira, setembro 19, 2005

desculpe-me, moça, mas flores mexem comigo.

de onde eu venho flor não nasce, flor se apresenta radiante à espera de um coração que a acolha sem perguntar de onde vem, sem saber como colhê-la, feliz por escolhê-la na esperança de um fruto doce.

você semeia, você cuida. eu só sei me incendiar pelo fogo que arde pétalas adentro, perfumes afora, sugando por um caule mutilado a água rala que me sirva de seiva.

meu berço é de asfalto, moça.

sexta-feira, abril 29, 2005

nessa rua se mergulha, se nada de braçadas nas águas fortes de tanta gente, tanta, tantos sorrisos e traços e olhos que nunca me viram e esbarram com os meus, seguindo adiante calçadas afora, tantas lojas, tantos risos, motores, freios, rio caudaloso de almas e corpos, pulso vivo e escuro sob a luz amarela da Santa Fe.

que rosto foi aquele? foi-se, o maldito, submergiu, olhar-anzol tão afiado que me abriu a pele e lá fui eu como pude fechando a torniquete essa sangria antiga, na boca o gosto acre de saudades físicas, e esse mundo volta a ser vasto, a ter abismos, distâncias, geografia cruel cuja lição meu coração nunca aprende.

boas ruas são assim, nos levam de volta ao centro.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, agosto 18, 2004

e eis você de novo, insano pelas ruas espalhando o que ninguém vê, ouvindo maravilhas que o barulho esconde, eis você de novo só como um cão, uivando no asfalto para que alguma lua surja, lua cheia, lua calma, lua que receba as oferendas tantas, que ouça os cânticos todos e te receba no colo branco e leve que essa cidade te nega dia após dia.

semáforos, carros, gente por todo lado. outro dia de cão.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, julho 21, 2004

eu me perdi indo ao Brás, e me achei nem sei onde, cercado de casinhas de pijama, fachadas de chinelo sentadas na rua vendo São Paulo passar.

eu me perdi de jeito, me enfiei onde não era chamado, em ruas que não davam mão, que eram só muro, galpões de poucos amigos, viadutos que não me deram bola.

com muito custo (vitória sem glória) achei meu rumo centro adentro, pedindo licença entre os prédios calados, reunidos com frio ao redor de fracas luzes e praças poucas, e com todo o respeito deixei-os para trás até chegar aqui, na parada festiva de prédios em marcha da avenida paulista, pista de pouso para meus vôos cegos.

em arabescos trôpegos, em garranchos miúdos, meu coração grafiteiro picha amor por todos os cantos.
(ouça aqui a versão falada)

terça-feira, julho 20, 2004

quebra-cabeças não me valem. jogo assim não vale.

as peças se fazem de tontas mas nasceram irmanadas, são farinha do mesmo saco, saco vedado em que nada falta nem sobra, medida justa onde tudo se encaixa, onde tudo fazia sentido e vai voltar a fazer.

meu negócio é outro, é negociar o que entra onde, como, descobrir onde enfio o que me vem de sobra. meu negócio é conversar o que não se converte, é equilibrar o não se mede, nem por tabela.

minhas contas não fecham. nunca.

e enquanto ruas me escorrem entre os dedos e o tempo me sopra os cabelos, digito incandescências que te derretam por dentro, te guiem na treva e te tragam de novo para o engate fecundo.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, março 17, 2004

eu quero ir para o Céu.
quero meu lugar no paraíso desse peito, quero pairar nesse coração para brilhar com a chama do meu fogo, dedilhando esses nervos musicais e fazendo chover delícias.

eu acredito em Graça.
acredito tanto que, no seio do inferno, abraço sem medo mil diabos, farejando anjos caídos.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, outubro 22, 2003

na calçada estreita tantos passam, tantos corpos, tanta pressa e risos e cada um abre caminho entre caminhos alheios, olhos rápidos avaliam corpos, vãos, vai-véns, olhos de todo tipo, olhares rápidos cruzam a rua, cobrem tudo, centenas, milhares de olhos úmidos rodando, dois globos para cada crânio, um mundo em cada cränio, todos fotógrafos de todos, todos figurantes anônimos nos retratos descartáveis de um horário de almoço.

ela é meu espelho. sem ela me desconheço.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, setembro 17, 2003


rebouças acima, ao volante num dia qualquer, tudo ficou claro.

que claro que nada.

nada de cores, brilhos, luz, contornos, nada. vi por instantes um mundo invisível de corpos densos, opacos, velozes, mundo escuro de um peixe cego nadando veloz noite adentro em correntes profundas, corpos dentro de corpos roçando por corpos, superfície contra superfície, fluidez e dureza, caldo turvo e inquieto que a luz milagrosamente atravessa e nos traz como árvores e carros e asfalto e dias de sol, sopa espessa em que sons perdem força até sumir.

foi breve.

no seu colo, nos seus braços, meu corpo ganha contorno, massa, calor, e o mundo é mar de novo.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, fevereiro 26, 2003

a cada dia me disparo por entre prédios como uma bola de pinball, ricocheteando entre edifícios ao som de sirenes, deslizando rápido no asfalto enquanto números se multiplicam, cercado de sinais luminosos e fragmentos de música, provocando encontros que me catapultem adiante e adiem cada dia mais o buraco inevitável.

a cada noite sonho com um movimento de quadril, um jeito de corpo que a faça jorrar mil bônus e sons até que um tilt a desarme e ela desfaleça exangüe e feliz.
(ouça aqui a versão falada)

quinta-feira, maio 09, 2002

tenho que dividir isso. uma descoberta assim não posso guardar comigo, não é justo. não que as pessoas não saibam. elas certamente sabem, mas fazem que não.

dirigindo nesse dia cinza sob um céu fosco, céu de alumínio, dirigindo na luz sem sombras de um meio-dia baço, abrindo espaço entre fluxos de automóveis e homens, envolto no carro por uma cápsula de vidro e música, é nesse momento que tudo ficou claro: essa cidade singra.

a brisa úmida, o céu que tanto muda, a bruma, tudo denuncia a lenta viagem mar afora.

preste atenção. ouça. o ruído dos motores está sempre lá. na calada da noite, na hora do rush, no urro do gol, os motores estão sempre lá, rugindo surdo e movendo a cidade.

só isso explica a pressa geral, a inquietude de todos, a urgência: somos todos marinheiros. estamos todos na casa das máquinas.

suba no alto dos edifícios, sobrevoe de avião, será inútil: não se vê onde a barca acaba, nunca se vê a linha do oceano. mas em cada beco, nos cantos, no metrô, uma brisa suave indica que a metrópole segue em frente sem olhar para trás.

se ela sabe disso? sabe sim, e de coisas que nem eu sei. os seus olhos têm outro brilho, seu riso tem outro brilho, sua pele tem outro tom, brilhos e tons de quem circula pelo tombadilho, de quem vê de frente o sol, de quem é dona por direito divino do novo mundo.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, março 20, 2002

noites de chuva são, para o chão, noite de gala. o asfalto tira o luto e veste paetês, lantejoulas, se cobre de ouro, esbanja na prata, e de tanto beber mal se pára em pé, os carros dançam e patinam, e o som das buzinas e motores e helicópteros e sirenes engrossam ainda mais o ar úmido e quente.

andando Paulista afora e noite adentro, pulando poças, driblando os distraídos, ligo para ela duas, três, inúmeras vezes. nada. impossível conseguir linha.

pena. queria tê-la comigo ali, no meio da azáfama. queria pelo menos banhar seus ouvidos com essa torrente de gente e máquinas e força e vida. é o mínimo que eu posso fazer por quem me faz ver tudo isso.
(ouça aqui a versão falada)

sexta-feira, outubro 26, 2001

uma insônia madrasta me lança nu e só no seio da noite. nu e nem tão novo, só e tão sem sono, olho para a insônia que me pariu e pergunto: quem é o pai nesse parto às avessas? que semente foi essa que fecundou o ventre do meu sonho e me deu não à luz, mas à treva e ao frio?

foi muita luz, talvez. ou o céu muito azul. ou as cores tantas e tão vivas, tão nítidas, tão descaradamente alegres dessa tarde milagrosa que me intoxicaram. talvez.

tentei guardar um pouco delas, dessas cores, desses brilhos fotografando muito, fotografando tudo, para guardar em pilhas de imagens algumas cores para dias menos vivos.

não vi ainda as fotos, mas já sei que da festa de luz, do jorro, das duchas e jatos e rios de vermelhos e azuis e verdes e amarelos elas só apreenderam a escuma, a escória, a casca. o jorro escapa sempre.

nu e só, sob a fraca lâmpada fria, revivo os jorros que vi

vampiro às avessas, protejo meus olhos dessa escuridão sem cor, e sinto correr na jugular o jorro escuro, quente, pulsante que eu julgava quase extinto, jorro que em algum ponto oculto jorra sem que nada o estanque.

algo está me dando de novo vida.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, outubro 10, 2001

volto a pé, e mergulho na noite da cidade, acompanhado por um cortejo de sombras minhas, por um balé de sósias escuros que giram em torno dos meus pés e deslizam mudos pelos muros, pelas grades, pelo asfalto fosco, asfalto que absorve feito esponja as nossas cores que os jorros de luz de cada lâmpada colorida, de cada farol veloz lavam e fazem escorrer asfalto adentro. Outros tantos homens cruzam meu caminho, já desbotados de tantas luzes, indistintos como a soma total dos pedaços de conversas, como as carícias duras dos motores, buzinas e freios.

em pouco tempo estarei em casa, e uma ducha de água morna há de me recobrar as cores e o brilho, e arrastar ralo adentro, canos e entranhas da cidade adentro, todos os vestígios oleosos que o dia deixou sobre mim.

algo, porém, a água não leva, não lava. o brilho fugidio daquele sorriso tingiu minha pele, ficou tatuado no peito, e há de me iluminar e aquecer por um bom tempo.
(ouça aqui a versão falada)

terça-feira, julho 17, 2001

essa moça me roubou uma cidade inteira. os caminhos que eu fazia, aquilo que para mim eram marcos, referências, passado, nem sei mais onde fica. sumiu tudo. circulo agora por uma cidade parecida, mas com outra geografia, com outros ritmos, com outro tempo, sobretudo com outro centro.

o centro dessa cidade é essa moça que, distraída, nem percebe mundos à sua volta dando nós enquanto caminha grácil, leve, encantadora.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, julho 11, 2001

- ouça. o mar está aí dentro.

a concha que aquele adulto me passou era linda, rósea, pesada. brilhava ao sol. meus olhos de menino mal davam conta. minhas mãos de menino mal davam conta. devo ter parecido incrédulo (estava sim desentendido) pois ele acrescentou:

- coloca no ouvido. é verdade.

obediente como sempre, encaixei aquela trompa fria no meu ouvido. era verdade.

o mar estava ali dentro. rugia, bramia, mar bravio na noite perpétua do interior de uma concha. o mar real, líquido e espumante à minha frente não tinha metade do mistério do mar invisível, atemporal, inatingível que eu entreouvia por uma fresta em madrepérola.

(...)

sem que eu estivesse pronto, os olhos dela se alinharam com os meus. o mar estava ali dentro. todo o vento do mundo estava ali dentro, todo o fogo do mundo rugia ali, e o rio do tempo zunia nos meus ouvidos como torrente, labareda, vendaval.

em um instante, seus olhos eram olhos de novo. belos olhos.
(ouça aqui a versão falada)

sexta-feira, junho 29, 2001

não tem mar, a minha cidade. mar, aqui, assim como tudo, é algo que se alcança com esforço.

o mar que para outros é porto, é para nós destino.

mar, na minha vida, foram momentos não muito longos, não muito próximos, momentos de que me despedi pensativo. sempre. mar para mim foi superfície, um voltar à tona. entre cada respiro desses, longos meses de imersão, de mergulho no turbilhão da cidade.

não consigo absorver a idéia de que o mar exista nos dias úteis. seria como um carrossel a girar sozinho, solitário, festivo e luminoso às oito horas da manhã. impensável. acho que o mar fecha para balanço.

(...)

vë-la, para mim, não é como cariocas vêem a glória da Terra mesmo que não queiram. vê-la, para mim, significa lugares certos, horas precisas, onde então meu coração menino faz castelos de areia na beira do mar.

como ela é quando não a vejo?
(ouça aqui a versão falada)

terça-feira, junho 19, 2001

ela caminha graciosa, distraida.

sob seus pés, quilômetros abaixo, pedra adentro, oceanos de ferro líquido fluem, rios incandescentes se entrecruzam e giram na escuridão profunda.

daqui de cima, ao sopro da brisa e à luz das manhãs, mal se percebe. só bússolas apontam, sismógrafos sentem, tremores indicam.

ela sorri, ri, dança.

de onde está, na paz dos seus dias, nem percebe o que rubores indicam, tremores traem, silêncios apontam.

sob a pele, milímetros abaixo, artérias adentro, um coração pulsa.
(ouça aqui a versão falada)

segunda-feira, junho 11, 2001

flores não foram feitas para nós. delas vemos pouco, sentimos metade.

o cheiro indecente de tão doce, descarado de tão forte que jasmins espalham na noite quente são chamariz para outras narinas, as suas cores são para outros olhos, olhos de abelha, de borboleta, de beija-flores, que dançam na sinfonia de cores e gostos e cheiros de que só percebemos os ecos.

quem merece os encantos, as graças, o charme musical dessa moça? pra que coração e pra que boca são essa pétalas e frutos? seus aromas me perturbam o sono, me perfumam a semana, e eu os persigo pela cidade, dias afora.
(ouça aqui a versão falada)

terça-feira, maio 15, 2001

pouco sei sobre os seus caminhos, sinto apenas que eles traçam em torno de mim uma malha intrincada, muito próxima. em alguns pontos meu caminho os cruza, e abre-se uma pequena brecha de tempo em que tenho a chance (a esperança/ a fome/ o desejo) de vê-la.

as poucas encruzilhadas que conheço eu semeio com flores, com doçura, com surpresas, sem saber jamais quando ela colherá esses mimos, sem saber jamais como ela acolherá esses mimos. vou semeando, enquanto vejo brotar e florir em mim as sementes que ela lançou sem querer.
(ouça aqui a versão falada)

segunda-feira, maio 07, 2001

eu poderia nunca tê-la visto. ela poderia ter esperado mais vinte anos pra nascer, ou então ter nascido princesa num reino distante, para os olhos de um só homem. é um milagre que eu a tenha visto, que eu a veja ainda, que essa mulher esplêndida floresça em meu caminho, e desabroche mais e mais a cada encontro. um milagre.

anos atrás, num momento muito feliz e rico, uma borboleta pousou em minha mao. estava em um carro, parado num semáforo, preso no trânsito, e ela surgiu, pousou no vidro, aceitou minha mao, aceitou que eu a trouxesse delicadamente para dentro, namoramos, ela se foi. um milagre.

uma borboleta morena e linda voa graciosa em torno dos meus dias. ela nem pousou ainda, e pra mim já é primavera.
(ouça aqui a versão falada)

quarta-feira, abril 04, 2001

pouco me lembro do filme do godard.

o título, "duas ou três coisas que eu sei dela", não faz sentido algum até se perceber que "ela" não era ninguém, era Paris.

todos os fragmentos de história, as imagens fugidias, as impressões, eram uma declaração de amor a uma cidade que ele conhece como ninguém. ou melhor, que ele conhece como alguém, como ele mesmo, de um ponto de vista muito peculiar, e que certamente não abrange todas as faces da cidade, todos os momentos da cidade, todos os olhares em torno da cidade. amar uma cidade é amar o que é móvel, dançarino, o que jamais é igual a si mesmo, sempre apaixonante.

há mulheres assim.
(ouça aqui a versão falada)